A lei de “desproteção animal” com cheiro a carne queimada

Ainda não tinham arrefecido as carcaças de mais de 350 porcos que arderam vivos no incêndio de Alcanede, Santarém, agora extinto, o Presidente da República promulgava uma lei em contraciclo com as já débeis e reduzidas medidas de prevenção de proteção dos animais: um Decreto-Lei que elimina a obrigatoriedade de instalação dos SADI (Sistemas Automáticos de Deteção de Incêndio) em explorações pecuárias.
A alegada justificação para a existência deste DL e a consequente promulgação por Marcelo Rebelo de Sousa ainda acentua mais o contraciclo com um país que se vê a arder dia após dia: a obrigatoriedade agora retirada revelava-se inadequada, atendendo às dificuldades de implementação da obrigação junto dos produtores, quer no plano logístico, quer pelos avultados custos financeiros.
Representando esta medida menos encargos para os produtores pecuários, até pode parecer bem-vinda, já que se procura dar resposta ao desenvolvimento económico nacional. No entanto, a que custo? Os prejuízos dos criadores a quem pertenciam os mais de 350 animais que morreram no incêndio de Alcanede serão menores do que a instalação dos SAID? A morte destes animais num atroz sofrimento justifica qualquer tipo de desenvolvimento económico? Perguntas retóricas cujas respostas se torna desnecessário obviar.
As questões relacionadas com a exploração animal na indústria alimentar levantam debates éticos e jurídicos que teimamos não realizar. Ou porque não reúnem sensibilidade suficiente nos fóruns governativos, ou porque são de tal forma sensíveis para o eleitorado que é difícil alguém querer trazer para cima da mesa esta nitroglicerina política.
No que toca ao procedimento durante uma catástrofe e das medidas de autoproteção dos animais para a indústria alimentar, a Lei de Bases da Proteção Civil (Lei nº 27/2006, de 3 de Julho) refere que um dos objetivos fundamentais da Proteção Civil é “socorrer e assistir as pessoas e outros seres vivos em perigo”, bem como “proteger bens e valores ambientais”. Com a promulgação deste DL a responsabilidade recai toda sobre a Proteção Civil, uma vez que deixou de ser obrigatório a montante qualquer prevenção por parte dos produtores.
Os desafios relacionados com a defesa dos direitos animais tornam evidente a complexidade do tema e a diversidade de opiniões num debate. São questões que levantam a imperatividade de uma análise cuidadosa, ponderada e a consideração de múltiplos pontos de vista. A ideia deve ser criar pontes sólidas para encontrar soluções equilibradas e eficazes que resultem em medidas de preparação e prevenção para o socorro animal. Os avanços nesta matéria dificilmente se conseguirão sem a responsabilidade e a ética de todos os intervenientes.
É cada vez mais perigoso não estabelecer linhas vermelhas em nome de uma Economia com fórmulas criadas em séculos passados e não com visão para as gerações futuras. Estabelecer limites e, ao mesmo tempo, repensar a abordagem, se não vejamos: que tipo de decisões podem ignorar, por exemplo, que o mercado nacional de alimentação para animais de companhia gerou no ano passado 90,2 milhões de euros, um crescimento de cerca de 11% face a 2023? Basta ler o relatório da Sell Out Pet Food GS1 Portugal, divulgado há dias, para se perceber que o crescimento neste setor não abranda.
Dados como os do relatório citado – que são um exemplo do reforço da consciência social para a convivência equilibrada entre humanos e animais – clarificam a necessidade de encarar o desenvolvimento económico como o desafio que representa no que toca ao bem-estar animal. Ao agirmos em contraciclo arriscamo-nos a que os mais de 350 suínos queimados vivos no incêndio de Alcanede tenham a forte probabilidade de subir para 3500 no próximo ano – e outro tanto com as restantes espécies destinadas a produção alimentar. Se isto é proteger seja a Economia, seja os produtores, seja os animais, seja o que for, então o melhor será mesmo não termos receio de lhe chamar políticas consecutivas de terra queimada.
observador